Em sete anos, a cidade gaúcha de Uruguaiana comprovou como o avanço dos serviços de água e de esgoto foi capaz de melhorar a vida de quem mora ali

A hora do intervalo na escola municipal Elvira Ceratti, localizada na Vila São Cristóvão, bairro de baixa renda de Uruguaiana, cidade no extremo do Rio Grande do Sul, é diversão pura. Durante os 30 minutos de folga dos alunos no meio da tarde, só se ouvem as risadas das mais de 500 crianças que estudam na instituição. O cenário pode parecer natural e corriqueiro para um ambiente escolar, mas essa liberdade é novidade para os estudantes.

Há menos de três anos, não havia brincadeira nenhuma, muito menos intervalo fora da sala de aula. Todo o ambiente externo precisava ser controlado pelos professores para evitar o contato dos alunos com o esgoto a céu aberto que corria em fossas ao redor da escola. “As crianças já brincavam nas fossas de esgoto quando elas estavam em casa. Toda semana havia pelo menos um aluno com atestado médico de 15 dias por causa de diarreia aguda”, diz Carla Ramos Duarte, diretora da escola. De acordo com ela, tinha ainda um lixão na parte detrás do terreno, piorando a já precária situação. Professora na mesma instituição há 23 anos, Carla diz que nunca havia presenciado uma mudança tão radical no ambiente da escola.

A transformação foi possível após um processo de universalização do acesso ao saneamento básico em Uruguaiana. Não foram só os estudantes que sentiram a diferença, mas todos os moradores do município. Isso porque, entre 2011 e 2018, o serviço de coleta e tratamento de esgoto, que chegava a apenas 9% das residências, alcançou 94%. Já o acesso a água potável saiu de 87% para 100% no mesmo período. A melhoria da qualidade de vida da população foi imediata, segundo relatam os moradores.

O cheiro forte de esgoto, somado ao incontrolável número de mosquitos que ficavam próximos dos rejeitos, impedia que janelas e portas fossem abertas em qualquer horário do dia. “Nós ficávamos fechados dentro de casa. Era só sair para a rua após uma chuva que um cheiro horrível de esgoto grudava na gente”, diz Mara Munhoz, de 46 anos. Dona de casa, ela vive no mesmo bairro onde fica a escola Elvira Ceratti. Foi ali que seus três filhos estudaram. Sua segunda filha, Andrezza Munhoz, de 24 anos, é deficiente e utiliza cadeira de rodas desde que nasceu. Ela e a mãe relatam as dificuldades que enfrentavam para atravessar as ruas de terra, com o esgoto correndo o tempo todo. “Era sofrido, porque a cadeira enroscava em todo lugar e o cheiro era insuportável”, afirma Andrezza. “Eu odiava quando chovia porque as fossas transbordavam e eu não conseguia ir à aula.”

Mais do que um marco de qualidade na vida dos moradores de Uruguaiana, os serviços impulsionaram diretamente índices de educação e saúde da cidade. “Nas áreas onde o saneamento foi implementado, os índices educacionais melhoraram. A aprovação subiu, a evasão diminuiu e o desempenho dos alunos se transformou”, diz Emerson Ortiz, secretário municipal de Educação de Uruguaiana. No Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, o Ideb, a nota da escola Elvira Ceratti passou de 3,5, em 2011, para 4,2, em 2017 (no município, a evolução foi de 4,8 para 5,3 no período, número que ficou ainda abaixo da meta da avaliação).

Nem toda melhora escolar pode ser atribuída ao saneamento, mas dados mostram que onde há água e coleta de esgoto os indicadores de educação são melhores. Um estudo do Instituto Trata Brasil, dedicado ao setor de saneamento, mostra que os índices de reprovação são 47% menores entre crianças e jovens que vivem em locais com instalações adequadas. Na saúde, o impacto é mais impressionante.

Nesses sete anos, Uruguaiana apresentou uma redução de 96% nos casos de doenças relacionadas à falta de saneamento básico. De acordo com dados da Secretaria Municipal de Saúde, em 2011, os hospitais registraram 2.365 ocorrências de diarreia aguda. No ano seguinte, os atendimentos passaram de 3.000. Gradativamente, com a ampliação do tratamento de água e da rede de esgoto, os casos de contaminação diminuíram. Em 2018, foram atendidos 106 pacientes com sintomas da doença. Nos três primeiros meses deste ano, não houve nenhum registro de diarreia aguda no município. “É impressionante o que aconteceu na cidade em tão pouco tempo, porque sempre se espera que a situação na área da saúde piore, e não que ela melhore”, diz Thais Aramburu, ex-secretária de Saúde de Uruguaiana e atual gestora da Santa Casa da cidade.

Estima-se que o município economize por ano 1 milhão de reais com a redução de atendimentos aos casos de contaminação por falta de saneamento. A Organização Mundial da Saúde calcula que, para cada dólar investido em infraestrutura de água e esgoto, são economizados 4,3 dólares em saúde pública.

A ampliação do saneamento na cidade também trouxe melhorias ambientais no Rio Uruguai, um dos mais importantes da hidrografia do sul do Brasil. Ele serve de fronteira com a Argentina e é a única fonte de renda para os pescadores da cidade. “Depois que fizeram melhorias no sistema de esgoto, as águas ficaram mais limpas e agora temos até mais peixes”, diz Carlos Alberto Gomes, enfermeiro aposentado e pescador nas horas vagas. Ele mora no bairro Cabo Luiz Quevedo, afastado do centro da cidade. Quando se mudou para lá, não havia nenhuma casa. No entanto, com o crescimento de Uruguaiana, na década de 80, a situação começou a mudar. “O espaço foi ficando mais cheio e, sem sistema de esgoto, tudo ia parar no rio, que fica no final do nosso bairro”, diz Gomes.

Carlos Gomes, ex-enfermeiro e pescador nas horas vagas: agora há peixes no rio perto de sua casa | Germano Lüders
O crescimento populacional da cidade, que hoje tem 127.000 habitantes, pressionou o já ruim sistema de água e esgoto local. Em 2011, a prefeitura abriu uma licitação com o objetivo de entregar a operação do serviço a uma empresa privada, por meio de uma parceria. Na época, o então prefeito, Sanchotene Felice (ex-PSDB, hoje Rede), estava insatisfeito com o trabalho da Companhia Riograndense de Saneamento — desde 2008, ele havia rompido com a estatal de saneamento em razão da falta de execução de obras na cidade, mas a decisão foi parar na Justiça e ficou três anos em julgamento.

Depois do imbróglio jurídico, a gestão municipal foi autorizada a finalizar o processo de concessão. A empresa que saiu vencedora da licitação foi a Odebrecht Ambiental. Ela obteve permissão para atuar em Uruguaiana por 30 anos. Mas a operação não saiu totalmente como o planejado. Cerca de três anos depois de assumir o serviço, a companhia se viu mergulhada em escândalos na Operação Lava-Jato, e isso prejudicou o andamento das obras. Foi só em 2017, quase seis anos depois, que a canadense Brookfield Business Partners assumiu o controle da Odebrecht Ambiental e a transformou na BRK Ambiental — empresa que responde atual-mente pelos serviços em Uruguaiana.

Com a nova gestão, as operações voltaram ao normal e as instalações dos sistemas de coleta e tratamento foram retomadas. “O saneamento traz ganhos para a população e para a economia das cidades. São gerados empregos nas obras e os bairros que passam a ser atendidos se valorizam. Há toda uma nova movimentação da economia local”, diz Teresa Vernaglia, presidente da BRK no Brasil, empresa que atua em 180 municípios.

Em sete anos de concessão, o município recebeu 145 milhões de reais de investimento em saneamento. Com o dinheiro, foram instalados 250 quilômetros de redes coletoras e duas estações de tratamento, uma de esgoto, que conta com quatro lagoas de purificação do conteúdo a ser despejado no rio, e outra de água potável. Segundo Teresa, até 2021 deverão ser investidos mais 65 milhões de reais para finalizar a instalação de coleta de esgoto em 330 casas que ainda não têm acesso à rede na cidade.

A história de Uruguaiana é uma prova de que é possível rapidamente mudar uma situação que acomete quase metade da população brasileira. Isso significa que cerca de 100 milhões de pessoas vivem em áreas onde não há acesso a coleta e tratamento de esgoto. Mesmo no Rio Grande do Sul, quinto estado mais rico do Brasil, mais de 50% dos moradores ainda não contam com serviços de saneamento, de acordo com os dados mais recentes do Instituto Trata Brasil. “Tudo isso nos prova que o saneamento não é uma questão de pobre ou de regiões periféricas. É uma questão de falta de olhar estratégico das autoridades para os benefícios do serviço”, afirma Edson Carlos, presidente do Trata Brasil.

A situação costuma melhorar nas cidades em que os serviços de saneamento estão a cargo da iniciativa privada. Nesses municípios, a rede de coleta e tratamento de esgoto atende em média 64% da população — a média das cidades brasileiras é de 46%, de acordo com dados inéditos da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto. Os municípios que contam com serviços privados, porém, representam apenas 6% do total de 5 570 cidades do país.

Há uma série de explicações para a baixa participação de empresas privadas no setor. Entre elas está a forte atuação política das empresas estatais, que garantem para si mesmas a prioridade nos governos. Atualmente, a lei permite que os municípios renovem os contratos com as estatais sem a abertura de um novo processo de licitação, ou seja, exclui a possibilidade de competição de quem pode oferecer o melhor serviço.

Além disso, o contrato firmado com uma empresa pública não determina nenhum prazo para que o trabalho seja concluído — nem mesmo fiscalizado. Já um acordo firmado com uma empresa privada prevê uma série de obrigações que podem custar caro se não forem cumpridas. Uma delas é a exigência de seguir à risca um calendário de obras e de entrega do serviço de saneamento. A?companhia ainda deve enviar com frequência um relatório de fiscalização da qualidade do serviço prestado, como a avaliação da potabilidade da água que chega aos moradores.

“Mais do que uma fiscalização muito mais eficiente, as empresas privadas de saneamento comprometem parte do dinheiro como garantia na hora de assinar o acordo. Caso o município queira cassar o contrato, esse valor é perdido”, diz Carlos Eduardo Castro, diretor da Águas do Brasil, concessionária que atende 14 municípios de Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo.

As discussões sobre o saneamento se arrastam há mais de uma década. Em 2007, depois de um longo período de debate no Congresso Nacional, foi fixado o marco regulatório do setor. A lei definiu os municípios como titulares dos serviços de água e esgoto, com poder de decisão, e determinou a criação de agências reguladoras para o setor. Atualmente são 50 espalhadas pelo país, de estados e municípios.

Desde então, uma série de mudanças foi proposta, como uma lei promulgada em 2016 que criou o Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento do Saneamento Básico para impulsionar as empresas a atuar no setor. Em novembro, o então presidente Michel Temer assinou uma medida provisória que passou para a Agência Nacional de Águas (ANA) a competência de regular a prestação dos serviços públicos de saneamento básico. Falta regulamentar a medida, que tem vigência de 180 dias e precisa ser transformada em lei.

Uma nova medida provisória está em discussão no Congresso. A proposta traz mudanças significativas, como a proibição de renovação automática de contratos com estatais. “Essa nova legislação em saneamento será o aperfeiçoamento de uma das áreas mais essenciais para que o país faça jus ao título de nona maior economia do mundo. Não dá mais para ficar do jeito que está”, diz Hamilton Amadeo, presidente da concessionária Aegea, que atua em 50 municípios, a maioria deles no Rio de Janeiro e em Santa Catarina.

A nova regulamentação pode dar o impulso aos investimentos necessários ao setor no país. Segundo levantamento da Confederação Nacional das Indústrias, de 2010 a 2018 o país investiu uma média anual de 13,6 bilhões de reais em saneamento. Para a universalização do serviço em 2033, meta assinada em acordo com a Organização das Nações Unidas, seriam necessários 22 bilhões de reais por ano. Mantido o atual ritmo de investimentos, o país só conseguirá atingir a meta estipulada pela ONU em 2060. Histórias como as de Uruguaiana mostram a diferença que o saneamento faz — e que vale a pena acelerar o passo.

MAIS SETOR PRIVADO É A SOLUÇÃO

Para a presidente da Agência Nacional de Águas, Christianne Dias, o saneamento continuará defasado sem a cooperação das empresas

A presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), Christianne Dias, está otimista com a reestruturação que o governo Bolsonaro prepara para o setor. Se uma reedição da medida provisória que atualmente está no Congresso Nacional para criar um novo marco legal para o serviço virar lei, a agência será a responsável por estabelecer as normas de referência do saneamento no país.

Quais são as principais mudanças que o novo marco legal do setor prevê?

O novo marco legal proposto tem dois grandes motes. O primeiro é a possibilidade de fazer um chamamento público para que as empresas assumam o serviço de saneamento. Já ficou evidente que a União não tem condições de suportar o nível de investimento necessário nessa área. O segundo ponto importante é estabelecer a competência da ANA para criar as normas de referência que regularão o setor. No entanto, é preciso deixar claro que a agência não será uma reguladora com poder sobre os municípios.

Já existe alguma definição das normas?

Criamos na ANA um grupo que está observando como anda o processo de saneamento em todo o Brasil. Como o país é muito extenso, é preciso determinar minuciosamente as necessidades dos estados. Ainda é cedo para cravar uma definição.

Há críticas de que as empresas podem priorizar cidades maiores, criando desigualdade. Como evitar isso?

A expectativa é que haja uma solução como a dos aeroportos, em que as empresas atendem um leque de cidades de diferentes portes. Assim, as operações com mais retorno compensarão as menos lucrativas. Com as normas, poderemos definir isso.

Qual é sua expectativa para o andamento no Congresso?

Temos 60 dias para que a MP caduque ou se transforme em lei. Particularmente, acredito que só com ela o investidor terá segurança jurídica para apostar no Brasil. Sem ela, o saneamento continuará defasado.

Fonte: Exame